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Entrevista com a psicóloga do esporte Sâmia Hallage


O acerto do erro

A medalha de ouro da seleção feminina de vôlei colocou sob os holofotes a função do psicólogo do esporte. Em 2004, as meninas, na opinião de muitos, amarelaram, não tiveram coragem de vencer um jogo que estava "no papo"; agora, mais maduras, foram poderosas, equilibradas e vitoriosas.

Na comissão técnica, apoiando o trabalho de Zé Roberto, estava a psicóloga Sâmia Hallage, uma capixaba de 40 anos que há 12 anos trabalha com a Confederação Brasileira de Vôlei, atuando nas categorias de base e agora conquistou lugar no time principal (foto Alex Almeida/Folha Imagem).

Conversei com ela sobre essa volta por cima, que é sempre exigida dos atletas, mas que também ronda os nossos espíritos amadores. Os corredores, às vezes, parecemos vítimas das mais diversas síndromes _somos obsessivos-compulsivos, deprimidos, exultantes, sei lá mais o quê.

Bom, vamos passar logo à entrevista.

Folha - Errando é que se aprende? Ou ninguém aprende nada com o erro?

Sâmia - Olha, eu acho que o erro ensina muito. Por que a gente aprende com o erro? Aprende que tem que fazer diferente, para conseguir um resultado diferente. É claro que a gente não precisa errar para aprender, mas, às vezes, a gente só aprende errando. Às vezes a gente aprende com o erro do outro, às vezes a gente aprende antecipando uma situação. O ser humano cresce muito quando ele tem uma dificuldade, quando ele erra, quando ele cai. Só que aí ele precisa fazer uso dessa situação de maneira positiva. E como é que a gente aprende isso? A gente aprende durante a nossa vida. Tem gente que lida bem, por exemplo, com uma derrota, com o erro, com uma dificuldade. Tem gente que não consegue lidar com isso. Por quê? Porque a gente nasceu diferente? Não. A gente aprendeu diferente. Onde a gente aprende isso? Na nossa família, principalmente. Então, por exemplo, se o meu filho, quando ele é pequenino, ele faz alguma coisa e ele é elogiado, ele é incentivado, ele vai aprender a lidar com situações difíceis de maneira muito diferente daquela criança que é massacrada pelos pais, por exemplo. Aquela criança que faz alguma coisa errada, e o pai e a mãe a chamam de burra, cobram, fazem pressão. São as primeiras experiências na infância e na adolescência, que, às vezes, ensinam e determinam como é que essa pessoa vai lidar com as situações que ela vai ter na vida dela, de repente, quando ela é um adulto.

Folha - Agora, mas o atleta eu acho que ele treina, eu imagino que treine muito mais essa capacidade de aceitação do próprio fracasso. Ele erram, caem, levantam e continuam...

Sâmia - Um atleta, é claro que ele tem que lidar com o fracasso, com a derrota. Até porque, no esporte, um ganha e um perde, não é? Não é todo mundo que ganha uma medalha de ouro numa Olimpíada. Volta um com a de ouro, um com a de prata, um com a de bronze, o resto sem medalha. Então, é uma coisa natural do esporte ganhar e perder. Então, a gente tem que já entender isso para poder até entender que, às vezes, o atleta perde, o atleta erra ou simplesmente tem um outro que é melhor do que ele. Ponto final. Isso não tem a ver com ser amarelão e com ser medroso.

Agora, é claro que o atleta que tem esse suporte, que consegue lidar melhor, consegue, sei lá, fazer melhor uso de uma derrota, é um atleta que fica mais tranqüilo, que tem até uma qualidade de vida melhor, porque a vida de atleta não é uma vida fácil. Ele vive numa pressão 24 horas por dia. Se ele não ganha, se ele bate sempre na trave, existe essa cobrança. Se ele ganha existe, também, essa cobrança: ele precisa continuar ganhando. Então, assim, ele precisa ter isso tranqüilo na vida dele porque senão ele não consegue ter saúde mental.

Essa parte que é muito importante. Ficar em paz, viver essa tal de qualidade de vida que é um conceito bem discutido. Eu acho que isso é um dos objetivos da psicologia do esporte. Não é só fazer o atleta ganhar medalha, mas é que ele consiga ter um bom rendimento, mas que consiga ter esse tal de bem-estar psicológico, porque senão a vida dele de atleta fica muito curta e limitada. Ninguém consegue viver assim a vida inteira.

Folha - A exigência dele é perfeição, o que se exige de qualquer um é nota dez o tempo todo...

Sâmia - Sim, mas veja que isso vale também para a gente, que é profissional. A gente, também, não pode errar, não é? Você pode fazer uma matéria horrível? Eu posso fazer uma besteira? Posso, eu vou ser criticada. A gente tem essa pressão, também, talvez a diferença seja que a gente não viva todos os holofotes. Então, quanto mais bem sucedido você é, mais você vai estar no foco, não é? Mas a gente tem essa pressão no nosso dia-a-dia, a gente tem que fazer as coisas darem certas. Só que tudo tem que ter um equilíbrio, não é? Porque senão aí é que não dá certo mesmo. Se a pessoa não estiver equilibrada, se ela não estiver tranqüila, aí as coisas não vão dar certo.

CONTINUA...

Escrito por Rodolfo Lucena às 05h12

Entrevista com Sâmia Hallage - Parte 2

Reforço positivo

Folha - E como é isso no mundo do atleta amador, do corredor? Cada um costuma se cobrar muito...

Sâmia - Olha, eu corro, também. E, aí a gente começa a correr, a gente começa a conviver com pessoas que correm e dos mais variados tipos. As pessoas começam a correr, talvez, buscando alguma coisa diferente na vida. E a corrida dá muita coisa legal em troca: é uma atividade superlegal, traz vários benefícios para a saúde, sociais, você conhece um monte de gente. Você começa a correr, você melhora o seu rendimento, isso melhora a sua auto-estima, você começa a se superar, coloca metas... Isso se reflete na vida pessoal, amorosa, de relacionamentos. Esse seria o lado positivo. Mas tem gente que acaba levando isso muito a sério. Mesmo sem ser um corredor profissional, a gente acaba convivendo com pessoas que correm e que acabam focalizando muito a vida delas nisso, não é? Então, a pessoa começa a correr para ter uma atividade legal, relaxante e tal, e aquilo acaba se tornando número um na vida delas. Então, a pessoas, às vezes, deixa de sair se divertir, ter uma vida social, porque tem que treinar todos os dias às 5 horas da manhã. E, às vezes, essa pressão é com ela mesma. E, quando elas não conseguem, como é que elas lidam com essa frustração? Por que aí, assim, puxa eu não posso tudo. Eu não sou o super-homem que eu imaginava. Ou elas começam a se dedicar e fazem aquela atividade de repente ser a mais importante da vida delas e começam a buscar desafios cada vez mais altos.

Eu acho que tem muito a ver com o que a gente chama na psicologia de reforçadores. Quais são os reforçadores que a gente tem disponíveis na nossa vida? Tem um monte de coisas que dá prazer para a gente. Coisas simples, às vezes, a relação com o filho ou uma relação com um parceiro legal. Ter um trabalho bem-sucedido. Sair para correr no parque. Ir a um cinema. Sair para jantar com os amigos, a gente tem inúmeros reforçadores e a gente busca isso na vida, coisas que fazem a gente se sentir bem. E, às vezes, a gente vê que o atleta de alto rendimento ou esse atleta amador, que fica muito bitolado, muito restrito a uma atividade, ele deposita todos os seus reforçadores naquilo. Então, as outras coisas param de ter graça na vida dele.

Folha - Então, o que a pessoa tem que aprender? Ela tem que aprender que ela, o seu valor não está colocado em nenhuma coisa individual que ela faça ou deixe de fazer, não é?

Sâmia - Sim, está em tudo. Não é porque eu não consegui ter uma medalha de ouro na Olimpíada que eu sou uma pessoa desprezível. Eu tenho outras qualidades. Puxa, eu cheguei no bronze ou eu cheguei em quinto lugar ou eu sou um atleta reconhecido, eu tenho outras qualidades. Eu acho que isso ajudar a manter esse bem-estar psicológico da pessoa. É que a gente, às vezes, focaliza e parece que tudo na vida vai depender daquela medalha. Tudo na minha vai depender se eu vou conseguir ou não fazer uma maratona em quatro horas? Eu perco essa visão mais geral. Puxa, às vezes, eu sou uma boa mãe ou um bom pai, eu tenho uma vida legal, um trabalho que me satisfaz, mas eu focalizo, de repente, eu fracassei naquela tarefa específica e, portanto, eu sou um fracassado. Acho que essa é uma visão errada, que, às vezes, a pessoa acaba tendo, porque ela focaliza muito tudo naquela atividade em particular.

Folha - É claro que não tem uma receita de bolol, mas que caminhos o sujeito pode trilhar para tentar chegar nesse ponto menos bitolado, com uma visão de si mesmo no mundo?

Sâmia - Então, eu acho que é muito pelo pensamento da pessoa, não é? O que a gente pensa, às vezes, determina aquilo que a gente vai fazer e aquilo que a gente vai sentir. Eu sou psicóloga e eu posso estar defendendo o meu peixe, mas, se a pessoa está num extremo desses ela se beneficiaria de um trabalho de terapia, porque o problema não é especificamente os três segundos ali, o buraco, provavelmente, é mais embaixo, mas, as pessoas ainda têm uma resistência muito grande. Porque o que na verdade a terapia vai fazer? Ela vai ajudar a pessoa a enxergar as coisas de um outro ponto de vista. Então, às vezes, a gente enxerga ali que toda a felicidade do mundo está em diminuir três segundos naquela volta de 400 metros, no treino daquela volta. E, a gente deixa de enxergar o quanto tem outras coisas tão importantes acontecendo na nossa vida. Então, talvez, assim, buscar uma ajuda ou de um amigo. Eu acho que, assim, uma ajuda especializada em muitos casos ela é necessária até porque às vezes a pessoa está deixando de ver o quanto a vida dela é legal e desvalorizando outras coisas boas que ela tem na vida e concentrando, aposta todas as fichas dela numa corrida, por exemplo ou naquele treino. E, aí é um circulo vicioso...

Folha - Corrida que deveria ser, em tese, um negócio para o fulano relaxar.

Sâmia - Para relaxar. Mas, sabe o que a gente vê? Que a pessoa, às vezes não tem uma vida legal e ela deposita todas as fichas naquilo. Em vez dela buscar melhorar os relacionamentos dela... O exercício físico ou a corrida, em vez de ela ser uma coisa para trazer o bem-estar, funciona como uma fuga. Uma fuga porque se eu coloco para mim que eu preciso todo dia acordar às 5 horas da manhã e treinar de manhã e treinar na hora do almoço e treinar à noite, eu tenho uma desculpa para mim mesma que eu não tenho lazer dos amigos ou que eu não cultivo amigos, entendeu?

Isso é uma coisa meio complicada, mas a verdade é essa. Eu acabo saindo um pouco do mundo, me isolando, mas com uma desculpa honrosa para mim mesma pelo menos. Você vê que hoje em dia existe até essa nova doença, que se chama vigorexia, não é?

 CONTINUA...

Escrito por Rodolfo Lucena às 05h09

Entrevista com Sâmia Hallage - final

Entenda a vigorexia

Folha - O que é isso?

Sâmia - A vigorexia seria o vício em atividade física. Essa doença nem está catalogada ainda no DSM, que é o manual dos distúrbios mentais, mas é uma doença... Ela, ainda, na verdade, nem está sendo reconhecida como tal, está sendo estudada. Mas, o que seria a vigorexia? Seria assim, o sujeito tem um excesso de atividade física... Sabe aqueles caras que ficam 24 horas por dia numa academia para ter músculo? E ele tem músculo porque ele não vê o músculo e ele cada vez faz mais atividade física...

Folha - Tô fraco, tô fraco, tô fraco....

Sâmia - Ela pode ser comparada, ela é o inverso da anorexia, onde a mulher pára de comer. Isso acontece mais com mulher, ela se vê como gorda, ela pára de comer, ela emagrece e ela continua se vendo gorda no espelho. É o distúrbio da imagem corporal. Mas, a vigorexia ou esse vício da atividade física é uma doença da sociedade moderna. Isso não existia alguns anos atrás. Então, a pessoa acaba se isolando dos relacionamentos, da família, de ter relacionamentos amorosos, às vezes, ela até compromete o próprio trabalho em busca de um corpo perfeito e por mais que ela faça atividade física, mais ela precisa fazer. Então, isso é, acho que, talvez, uma coisa comportamental mesmo, não é? A vigorexia é mais estudada, mais voltada para o aspecto da musculação, que tem a ver com a imagem corporal.

Folha - Voltando ainda para a questão do erro e da dor do erro, um pouco para o atleta profissional e para o amador, errar afinal é humano ou é desumano?

Sâmia - Não, errar é humano, errar faz parte da vida a gente acerta e erra o tempo todo. O problema é como: o que a gente faz com o erro? Eu acho que o problema é esse. Errar todo mundo vai sempre errar. O problema é o que a gente faz com ele e como a gente se comporta depois do erro. Então acho que isso é o crucial.

Folha - Ou seja, o fulano que errou é que pode ser desumano consigo mesmo.

Sâmia - Isso, perfeito. Se eu olho para o erro como - é claro que a hora que eu errei, a hora que eu fracassei é muito dolorosa, é muito sofrida e todo mundo vai sofrer com o erro, com uma coisa que não deu certo. Todo mundo vai chorar, todo mundo vai sofrer. Só que tem uma hora que eu preciso fazer alguma coisa com aquilo. E, o que eu tenho que fazer? Bom, se o que eu fiz me levou a essa situação de erro, talvez, para eu ter um resultado diferente, eu tenho que fazer diferente. E, aí eu tenho que buscar uma outra alternativa para mudar minha estratégia. Se eu mudar o que eu fiz, eu vou mudar o resultado, porque o resultado é produto do nosso comportamento. Então, se eu mudar o que eu faço, eu mudo o resultado que eu tenho. Esse é um dos princípios básicos da análise do comportamento. Se eu tenho o meu comportamento, eu mudei aquilo que eu fiz, eu mudei o resultado daquilo e aí eu aprendo a me comportar de maneira diferente e aí eu tenho um resultado diferente. Quando eu tenho um resultado diferente, eu vou olhar para o meu olho e falar: puxa vida, olha, que legal?

Folha - É, mas aí você aprendeu não com o erro, mas aprendeu com o acerto novo. Quando você erra, você aprende que aquele não é um caminho. Então, você não teve um aprendizado de vitória.

Sâmia - Ah, não, mas, de alguma maneira, você iniciou uma nova caminhada. É, eu não aprendi com o erro, mas eu vou aprender com aquilo que o erro, de repente me fez mudar, porque o erro de repente fez parte para eu mudar o meu comportamento, porque daquele jeito que eu estava fazendo não estava dando certo. Então, preciso mudar meu comportamento para mudar meu resultado. Aí eu aprendo, sim, com esse novo comportamento, que é o legal, que é o acerto.

Folha - Na Olimpíada, alguns países entraram em grande número de finais e perderam quase todas. Há um medo de vencer? O tal amarelão?

Sâmia - Essa questão de amarelar é uma questão muito complicada. O que a gente tem de visão de fora nem sempre é a visão acertada. Então, às vezes, as pessoas me perguntam assim: puxa, mas será que fulano de tal não ganhou tal prova por que amarelou? Eu falo: não sei. Primeiro, porque eu não gosto muito desse conceito amarelar, não é? Não dá para a gente generalizar. Por que pode ser que o atleta não tenha conseguido a medalha porque, sei lá, um excesso de ansiedade o atrapalhou na final? Pode. Mas essa é uma possibilidade entre mil outras, não é? Então, a gente não sabe. Tem todo o lado, de repente, da preparação física, técnica, tática. Não é só o emocional; o emocional ajuda, mas ele não define sozinho.

Não adianta o cara estar bem preparado emocionalmente e não estar bem preparado fisicamente, porque ele não vai agüentar, de repente, ele não vai ter pernas para completar a prova. Também, o contrário é verdadeiro, não adianta ele ter pernas e não ter cabeça. Na verdade, é um conjunto de coisas que vão fazer um atleta ser o vencedor. Não dá para afirmar: é isso. Não é matemática, é muito mais do que isso.

Escrito por Rodolfo Lucena às 05h07







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